O Conselho Federal de Medicina acaba de editar a Resolução 1.957/2010, estabelecendo novos parâmetros éticos para a utilização das técnicas de reprodução assistida.
A nova resolução trouxe poucas inovações. Manteve a proibição da sexagem, ou seja, a aplicação da técnica de RA para selecionar o sexo ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, proibiu a fecundação de óvulos com qualquer outra finalidade que não a procriação humana e continuou a exigir o chamado “consentimento informado” dos pacientes (doadores e receptores), abrangendo os aspectos biológico, jurídico, ético e econômico do procedimento.
Entre as modificações, destaca-se o estabelecimento de novos limites para implante de embriões em pacientes que se submetem à técnica. O teto anterior de quatro embriões está mantido apenas para mulheres de 40 anos ou mais. Em mulheres com até 35 anos, o número máximo de embriões a serem transferidos não pode ser superior a dois e em mulheres entre 36 e 39 anos, até três embriões.
Porém a novidade mais comemorada refere-se aos que podem se submeter às técnicas de RA. Enquanto a Resolução anterior estabelecia que apenas a mulher capaz poderia ser receptora das técnicas de RA, exigindo, ainda, a aprovação do cônjuge ou do companheiro, quando casada ou em união estável, a nova regulamentação do CFM diz que todas as pessoas capazes podem ser receptoras das técnicas de RA, o que permitiria, pelo menos sob o aspecto ético, desde que afastado risco grave à saúde do receptor ou do possível descendente, a tão polêmica gravidez masculina. Se a medicina avançar a ponto de admitir tal possibilidade, para o CFM não haverá qualquer óbice ético (!)
Outra alteração refere-se ao destino dos embriões excendentários. A Resolução anterior determinava que o excedente seria criopreservado, não podendo ser descartado ou destruído. A nova regulamentação, ao contrário, permite o descarte de embriões, estabelecendo que do número total de embriões produzidos em laboratório, somente os excedentes viáveis seriam criopreservados. Objeta-se, todavia, se poderia o CFM haver admitido expressamente o descarte de embriões, em possível afronta ao art. 5º da Carta Magna. Ou o direito à vida não tutelaria também o embrião? Não são poucos os juristas que entendem que se a proteção constitucional do direito à vida refere-se ao ser humano, também o embrião estaria incluído na sua proteção jurídica, porquanto é ser e é humano.
Finalmente, o CFM tratou da reprodução assistida post mortem, permitida desde que haja autorização prévia específica do falecido para o uso do material biológico criopreservado.
São questões, como se vê, extremamente polêmicas, para as quais nem o Direito nem a ciência possuem as respostas adequadas. Não podem, por isso, ter a seu regramento circunscrito a mera resolução do CFM, já que extrapolam a seara exclusivamente ética, exigindo a intervenção do legislador. É surpreendente que um Estado que possui uma das maiores produções legislativas do mundo ainda não tenha regulamentado uma matéria de tamanha relevância para a sociedade.
Observe-se que as Constituições brasileiras jamais, em tempo algum, disciplinaram, albergaram, tutelaram expressamente, o processo de separação legal, que sempre foi matéria de lei ordinária.
A Carta de 1824 sequer menciona o casamento ou sua dissolução. A CF/1891 se limita a enfatizar que a “República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita” (art. 72, § 4.º). A Constituição de 1934 remete a questão para a lei ordinária (Art. 144. A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. Parágrafo único. A lei civil determinará os casos de desquite e de anulação de casamento, havendo sempre recurso ex officio, com efeito suspensivo). A Carta Polaca (1937) suprimiu a referência ao desquite e à anulação do casamento, limitando-se a reafirmar a indissolubilidade do vínculo. (Art. 124. A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. Às famílias numerosas serão atribuídas compensações na proporção dos seus encargos). A Constituição de 1946 manteve a supressão e reafirmou a indissolubilidade (Art. 163. A família é constituída pelo casamento de vínculo indissolúvel e terá direito à proteção especial do Estado). A Constituição de 1967/1969 também não mencionou o desquite. Apenas com a Emenda Constitucional 9, de 1977, a separação judicial (antigo desquite) volta a ser mencionada na Constituição, agora como um requisito para o divórcio (Art. 175 […] § 1.º O casamento somente poderá ser dissolvido, nos casos expressos em lei, desde que haja prévia separação judicial por mais de três anos).
Tanto as Constituições de 1967/1969 , como a de 1988, mencionaram a separação apenas quando quiseram restringir ou dificultar o divórcio, elegendo-a como um requisito, como um pressuposto, um condicionante prévio.
Ora, se a Constituição não disciplinava, nem sequer se referia à possibilidade de dissolução da sociedade conjugal (referindo-se apenas ora à indissolubilidade, ora à dissolução do casamento), poderemos concluir que tal procedimento desapareceu com a promulgação da emenda? Poderia a emenda haver “suprimido” aquilo que a Constituição não disciplinava?
Entendemos que não!
O raciocínio contrário nos levaria à conclusão, surreal, de que também a “separação de fato”, ela própria, teria sido suprimida pela alteração constitucional, uma vez que era mencionada, com a separação legal, e agora não o é mais.
Não olvidamos a possibilidade de um conflito implícito e virtual, sempre que exista uma incompatibilidade absoluta, não entre os textos normativos em sua literalidade, mas entre os princípios e valores subjacentes aos dispositivos normativos. Tampouco sob esse prisma vislumbramos um conflito ou contradição que imponha o afastamento total do procedimento da separação legal. Que valores ou princípios estariam em colisão? A Constituição emendada reafirma o princípio da dissolubilidade do casamento pelo divórcio, expurgando, isso sim, qualquer óbice que se pudesse opor à máxima efetividade e optimização desse princípio. Mas esse princípio não colide com a manutenção de um sistema dualista que permita, por um lado, a dissolução do casamento pelo divórcio, sem delongas, sem empecilhos formais ou materiais; e, por outro, a dissolução apenas da sociedade conjugal, desde que tal procedimento não seja colocado como um requisito, uma barreira, um freio ou mesmo um redutor do princípio da dissolubilidade.
Assim, no tocante aos dispositivos de lei ordinária que estabeleçam prazos ou requisitos para o divórcio, parece-nos inquestionáveis tanto o conflito com a regra como a colisão com o princípio da dissolubilidade do casamento, impondo-se o afastamento da lei ordinária, não subsistindo mais qualquer pré-requisito temporal para decretação do divórcio. A Constituição é clara: o casamento se dissolve pelo divórcio, independentemente de qualquer requisito ou condição preestabelecida na lei. Não havendo a Carta Magna estabelecido requisitos temporais (ou os havendo suprimido), não seria mais lícito à lei ordinária estabelecê-los.
Os atributos da supremacia e da força normativa da Constituição terão como consequência direta a derrogação do caput e do § 2.º do art. 1.580 do Código Civil, na parte referente ao prazo de separação judicial, nos casos de divórcio por conversão; e ao prazo de separação de fato, no divórcio direto. A partir de agora entendemos possível o divórcio por conversão, independentemente do prazo de separação legal, bem como o divórcio direto, independentemente do prazo de separação de fato.
Pelas mesmas, entendemos derrogados o § 1.º do art. 1.572 e o caput do art. 1.574, no que tange aos prazos de um ano de ruptura da vida em comum ou mais de um ano de casamento, para propositura da ação de separação judicial litigiosa ou consensual. Ora, se para a dissolução do casamento, que constitui fato de maior relevância para o Direito de Família, não se exige mais qualquer requisito temporal, seria uma contradição exigi-lo para a dissolução da sociedade conjugal. Aqui vale o velho adágio de que “quem pode o mais pode o menos”.
No tocante à Lei 11.441, alteração alguma se verificou, uma vez que o art. 1.124-A do CPC apenas remete aos prazos previstos na lei substantiva (observados os requisitos legais quanto aos prazos). Se foram suprimidos os requisitos de prazo, implica dizer que o divórcio extrajudicial pode ser decretado independentemente de comprovação de período anterior de separação, quer de fato ou de direito, e que a separação extrajudicial também não se vincula a qualquer tipo de prazo.
Todavia, no que tange à possibilidade de dissolução da sociedade conjugal pela separação judicial ou extrajudicial como opção do casal, não vislumbramos qualquer conflito de regras ou colisão de princípios entre a legislação ordinária e a ordem constitucional superveniente, advinda a partir da EC 66.
Nada obsta que o casal, pelas mais variadas razões, opte, em manifestação de vontade autônoma, espontânea, livre e consciente, por postular a separação de direito, e não o divórcio. Trata-se de situação que, no futuro, talvez se torne rara, difícil de ocorrer na prática, mas que existe por previsão legislativa expressa, e, enquanto vigentes o Código Civil de 2002 e o Código de Processo Civil, com as alterações da Lei 11.441, não poderá ser obstada, quer pelo juiz, muito menos pelo tabelião, os quais, se assim o fizerem, estarão atuando contra legem.
Uma vez decretada a separação, será perfeitamente possível a sua conversão em divórcio, tal como previsto no art. 1.580 do CC/2002, dispensando-se, apenas, o requisito temporal.
Ressalte-se, enfim, que essa solução que estamos a propor, e que podemos chamar de “dualista opcional”, não constitui novidade alguma no direito comparado. Em Portugal, por exemplo, existe a previsão de divórcio e de separação judicial como procedimentos autônomos, podendo o casal optar por um ou por outro (art. 1.795º). O Código Civil português admite a conversão da separação em divórcio e enaltece a possibilidade de reconciliação como traço distintivo entre ambos. Destaque-se que esse sistema dualista foi mantido mesmo após a edição Lei 61, de 31.10.2008, que alterou os dispositivos do Código Civil referentes ao divórcio. Ou seja, os portugueses, na reformulação que fizeram no divórcio, mantiveram a separação judicial.
O sistema dualista opcional, que emerge da EC 66, harmoniza-se com o princípio da liberdade familiar, de fundo constitucional, na medida em que possibilita aos cônjuges a escolha entre dissolver logo o casamento, ou dissolver apenas a sociedade conjugal, por razões de conveniência pessoal, aí incluídas as questões religiosas e outras de foro íntimo, nas quais o Direito não deve se imiscuir.
Essa, portanto, foi a grande revolução da EC 66, e que merece, sem dúvida, ser comemorada. Possibilitar aos cônjuges o livre exercício de sua autonomia privada, optando entre a separação e o divórcio, sem ter que se submeter aos requisitos temporais pretéritos.
Assim, no sistema atualmente em vigor, quem contrair matrimônio hoje, e pretender romper a relação casamentária amanhã, poderá fazê-lo livremente, elegendo uma entre as duas alternativas possíveis: (i) dissolução simultânea do vínculo matrimonial e da sociedade conjugal pelo divórcio, ou (ii) dissolução apenas da sociedade conjugal pela separação legal. Em ambos os casos, poderão os cônjuges, igualmente, escolher entre valer-se ou não das vias judiciais, desde que inexistam filhos menores e o rompimento seja consensual.
Registre-se, finalmente, que estas conclusões parecem coincidir com a manifestação do CNJ – Conselho Nacional de Justiça, que no Pedido de Providências n.° 0005060-32.2010.2.00.0000, deliberou pela alteração da Resolução nº 35, no sentido de adaptá-la à EC 66, mantendo, expressamente, a possibilidade de lavratura de escrituras de separação extrajudicial, suprimindo, tão somente, os requisitos temporais [05].
Notas
- Redação original: § 6.º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos. Redação após a reforma: § 6.º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.
- A questão da revogação tácita é problema que chama a atenção do direito intertemporal. As regras aplicáveis à revogação tácita estão previstas no § 1.º do art. 2.º da LICC (A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior). Uma lei pode ser derrogada ao ab-rogada, não apenas quando a lei posterior o declare expressamente, mas também por incompatibilidade com a lei nova, ou ainda pelo fato de a lei posterior haver regulado completamente a matéria antes objeto de lei anterior. Nesse sentido, a doutrina de Paulo de Lacerda: “Se a nova norma vier a regular diversa e inteiramente a matéria regida pela anterior, esta poderá ser tida como revogada, seja geral ou especial, pois haverá aniquilamento total das leis reguladoras da matéria, sem distinguir entre gerais e especiais, como condição inelutável para a implantação de um regime jurídico integral diferente” (ApudDINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro interpretada. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 75). Identificar se houve ou não a revogação tácita, de forma a se poder identificar ou não a presença de um conflito temporal, demanda análise complexa e constitui tarefa hermenêutica de peso, de difícil pacificação na jurisprudência ou na doutrina.
- VELOSO, Zeno. Controle jurisdicional de constitucionalidade, p. 235.
- O Direito Intertemporal é constituído pelo conjunto de normas e princípios jurídicos cuja finalidade é resolver as questões suscitadas pela sucessão de duas leis no tempo.
- EMENTA: PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS. PROPOSTA DE ALTERAÇÃO DA RESOLUÇÃO Nº 35 DO CNJ EM RAZÃO DO ADVENTO DA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 66/2010. SUPRESSÃO DAS EXPRESSÕES “SEPARAÇÃO CONSENSUAL” E “DISSOLUÇÃO DA SOCIEDADE CONJUGAL”. IMPOSSIBILIDADE. PARCIAL PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. – A Emenda Constitucional n° 66, que conferiu nova redação ao § 6º do art. 226 da Constituição Federal, dispõe sobre a dissolubilidade do casamento civil pelo divórcio, para suprimir o requisito de prévia separação judicial por mais de 01 (um) ano ou de comprovada separação de fato por mais de 02 (dois) anos. – Divergem as interpretações doutrinárias quanto à supressão do instituto da separação judicial no Brasil. Há quem se manifeste no sentido de que o divórcio passa a ser o único meio de dissolução do vínculo e da sociedade conjugal, outros tantos, entendem que a nova disposição constitucional não revogou a possibilidade da separação, somente suprimiu o requisito temporal para o divórcio. – Nesse passo, acatar a proposição feita, em sua integralidade, caracterizaria avanço maior que o recomendado, superando até mesmo possível alteração da legislação ordinária, que até o presente momento não foi definida. – Pedido julgado parcialmente procedente para propor a modificação da redação da Resolução nº 35 do Conselho Nacional de Justiça, de 24 de abril de 2007, que disciplina a aplicação da Lei nº 11.441/07 pelos serviços notariais e de registro, nos seguintes termos: a) seja retirado o artigo 53, que versa acerca do lapso temporal de dois anos para o divórcio direto e; b) seja conferida nova redação ao artigo 52, passando o mesmo a prever: “Os cônjuges separados judicialmente, podem, mediante escritura pública, converter a separação judicial ou extrajudicial em divórcio, mantendo as mesmas condições ou alterando-as. Nesse caso, é dispensável a apresentação de certidão atualizada do processo judicial, bastando a certidão da averbação da separação no assento do casamento.” (Pedido De Providências N.° 0005060-32.2010.2.00.0000. Relator: Conselheiro Jefferson Kravchychyn. Requerente: Instituto Brasileiro de Direito de Família. Requerido: Conselho Nacional de Justiça)
Publicado em: JusNavegandi e Portal Âmbito Jurídico