Na coluna passada, abordei as substituições testamentárias de uma forma geral. Hoje vou tratar especificamente da substituição denominada fideicomissária e a indevida limitação a essa modalidade trazida pelo atual Código Civil.
O artigo 1.951 chama de substituição fideicomissária a situação em que o testador, ao instituir herdeiros ou legatários, estabelece que, por ocasião de sua morte, a herança ou o legado se transmitirão, em confiança (fidúcia) a determinadas pessoas provisoriamente (propriedade resolúvel), mas que, após a morte destes ou após o advento de certo termo ou certa condição, a herança ou o legado passarão a outra pessoa, que vem a ser o verdadeiro destinatário da deixa testamentária.
São, portanto, três os personagens do fideicomisso: o testador, chamado de fideicomitente; a pessoa escolhida por ele para conservar em benefício de outrem a herança ou legado, a quem se chama fiduciário; e o beneficiário final ou fideicomissário. Forma-se, assim, uma relação triangular ou tripartite. O testador, responsável pela instituição do fideicomisso, escolhe os demais vértices do triângulo. O primeiro a receber os bens, no momento da abertura da sucessão, inclusive por força da saisine, é o fiduciário, que adquire a propriedade da herança ou legado, mas restrita e resolúvel e ainda com a obrigação legal de proceder ao inventário dos bens gravados e de prestar caução de restituí-los se o exigir o fideicomissário. Este, a seu turno, também adquire a propriedade, porém sob condição suspensiva. Adquire um direito condicional ou ainda um direito expectativo [1]. O direito subjetivo do fiduciário se subordina a condição resolutiva, enquanto o direito do fideicomissário a condição suspensiva.
O Código Civil de 2002, entretanto, no artigo 1.952, trouxe indevida e desnecessária limitação para o fideicomisso, a partir de então somente admitido em favor do concepturo, vale dizer, o fideicomissário só pode ser pessoa não concebida ao tempo da instituição (prole eventual) e também não nascida ou concebida na data de abertura da sucessão.
José Fernando Simão critica essa limitação, pois “desencoraja o fideicomisso, já que, na prática, grande será o risco de não surgir a prole eventual e caducar o fideicomisso no caso concreto. Ademais, deixar bens implica, normalmente, conhecer a pessoa e querer beneficiá-la. A prole eventual é um nada no momento do testamento. Querer beneficiar prole eventual é dizer que não se quer beneficiar ninguém com quem convive no momento. É um ato de desesperança quanto às pessoas com quem o testador convive e esperança de um futuro melhor (o qual o testador não estará vivo para ver) [2]“.
A restrição à livre instituição do fideicomisso foi inserida no projeto Miguel Reale no bojo de uma série de medidas de redução da liberdade testamentária, em benefício dos herdeiros legítimos, como foi o caso da inserção do cônjuge entre os herdeiros necessários, da obrigatoriedade de declarar justa causa para aposição de cláusulas restritivas da legítima entre outras. Entretanto essa corrente doutrinária mais intervencionista restou superada pela realidade a partir de uma crescente conscientização social sobre a necessidade de se assegurar maior autonomia privada nas relações sucessórias. Por isso, Marcos Ehrhardt Júnior e Gustavo Andrade questionam se “não teria chegado o momento de pensar num Direito Sucessório mínimo, sujeito à interferência estatal apenas quando estritamente necessário para a proteção de vulneráveis, com amplo espaço para que o titular dos bens decida qual o destino que pretende conferir ao seu patrimônio, quando aberta a sua sucessão? [3]“.
O esgarçamento do vínculo de aderência social das normas restritivas da liberdade testamentária tem se tornado cada vez mais combatida no Brasil, não se justificando que a autonomia privada do autor da herança seja limitada sem qualquer razão minimamente justificável. Não se trata aqui de violação à legítima dos herdeiros necessários, mas de uma escolha pessoal do testador sobre como dispor do seu quinhão disponível, em relação ao qual a liberdade é a mais ampla possível, não encontrando limites na ordem pública, senão aqueles relacionados à proteção da dignidade da pessoa humana e à vedação a quaisquer formas de discriminação.
Por que razão a proibição a que o testador institua, como beneficiários sucessivos de seu patrimônio (disponível) duas pessoas já existentes? Por que razão o beneficiário final (fideicomissário) só pode ser uma pessoa inexistente e, consequentemente, completamente desconhecida do testador?
Sob esse prisma, não seria despropositado refletir sobre a inconstitucionalidade do artigo 1.952 quando oposto, não apenas ao princípio da liberdade testamentária, mas também ao próprio direito fundamental garantido no inciso XXX da CF/88 [4]. O texto constitucional é expresso ao assegurar, entre os direitos e garantias fundamentais, o direito de herança e não o direito à herança. A distinção não é meramente semântica e produz consequências decisivas no tocante ao âmbito de abrangência do direito fundamental, notadamente no que alude aos destinatários da proteção.
O direito de herança tem como titulares, não apenas os herdeiros (o que teria ocorrido se o constituinte houvesse mencionado o direito à herança), mas especialmente o autor da herança. O direito de herança é principalmente dele, que era o dono do patrimônio, sobre o qual podia dispor livremente em vida e deve poder dispor para depois de sua morte.
Quando a lei infraconstitucional limita, sem justificativa razoável, o direito de disposição do testador infringe, diretamente, o direito de herança do instituidor do fideicomisso, não se podendo invocar, a contrario sensu, a justificativa da proibição na proteção do direito de herança de qualquer herdeiro.
[1] Não se confunda direito expectativo com a expectativa de direito. Enquanto a expectativa é uma situação sem significação no mundo jurídico, o direito expectativo é irradiação de efeito de negócio jurídico que já existe, como no caso do negócio subordinado a condição suspensiva, onde o titular já tem o direito (expectativo) de adquirir o direito objeto do negócio jurídico (direito expectado) assim que a condição se implementar. Em outras palavras, o direito expectativo é o direito (já adquirido, já incorporado ao patrimônio) de adquirir outro direito, chamado de expectado, que é o direito dependente de condição, termo ou encargo. Assim, quando falamos em direitos condicionais, estamos, na verdade, aludindo a dois direitos: o expectativo e o expectado. (Cf. DELGADO, Mário Luiz. Novo direito Intertemporal Brasileiro. São Paulo: saraiva, 2014, pp. 192-193).
[2] SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; DELGADO, Mário Luiz; MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Código Civil Comentado. Doutrina e Jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 1.592.
[3] A autonomia da vontade no direito sucessório: quais os limites para a denominada “sucessão contratual”? Disponível em: https://migalhas.uol.com.br/coluna/migalhas-contratuais/335429/a-autonomia-da-vontade-no-direito-sucessorio–quais-os-limites-para-a-denominada–sucessao-contratual. Acesso em 20/11/2020). Ressaltam os autores que “no decorrer dos últimos anos, um movimento doutrinário fez despertar o debate em torno dos institutos do direito das sucessões. Em alguns ordenamentos jurídicos a discussão tem girado em torno da liberdade de testar, aproximando também nesse aspecto os dois grandes sistemas do direito contemporâneo, o da Common Law e o romano-germânico ou da Civil Law, em uma demonstração de que ambos dialogam em busca de segurança jurídica com um maior equilíbrio entre a proteção dos herdeiros necessários e a ampliação da autonomia do autor da herança quanto à destinação dos seus bens após a morte. No Brasil, para além da temática concernente à sucessão testamentária e, por consequência à possibilidade de flexibilização ou relativização da herança legítima, o debate assumiu dimensão mais larga para abranger uma série de institutos que se abrigam sob o espectro do que veio a se apresentar como ‘planejamento sucessório’. Mais do que um simples pensar sobre como se dará a sucessão no estreito campo da divisão dos bens, o planejamento sucessório trouxe da experiência do Direito Empresarial, onde acontece com frequência, a práxis relacionada a uma intrincada rede de atos jurídicos que visam tornar mais rápida, mais fácil e dotada de maior efetividade a sucessão da pessoa física”.
[4] “XXX. é garantido o direito de herança”.
Mário Luiz Delgado é advogado, parecerista, professor do programa de mestrado e doutorado da Fadisp, presidente da Comissão de Direito de Família e das Sucessões do Iasp, presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do IBDFAM, doutor em Direito Civil pela USP e mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP.
Artigo publicado na Revista Consultor Jurídico conjur.com.br