Cláusulas pétreas e reforma constitucional

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Cláusulas pétreas e reforma constitucional

Os jornais informam que o poderoso presidente da Câmara dos Deputados pretende incluir em pauta para votação, no próximo dia 10/06, a famigerada emenda que reduz a maioridade penal.

A propósito, muitos são os que sustentam inserir-se o tema entre as chamadas cláusulas pétreas, ou seja, determinados direitos que, por força do art. 60, §4º, IV, da Constituição da República, se mostrariam invulneráveis e, portanto, insuscetíveis de reforma pelo constituinte derivado. A denominação “cláusula pétrea” abrange o conjunto de limitações ao poder de emendar a Constituição.

Mas até que ponto esses direitos são mesmo intangíveis? Eles vinculariam todas as gerações futuras, que permaneceriam escravas das escolhas do passado?

Ainda que a maioridade penal esteja inserida no elenco de cláusulas pétreas, isso impediria o Congresso Nacional de discutir a matéria e eventualmente alterar a Constituição?

Mesmo discordando do mérito da proposta, penso que a Constituição pode, sim, ser emendada para reduzir a maioridade penal.

Qualquer direito fundamental é passível de reforma, obedecido o devido processo legal. Mesmo as cláusulas pétreas não podem se sobrepor à deliberação de toda uma coletividade. Exatamente por terem sido o resultado da vontade coletiva de 1988, elas não podem durar mais do que o convencimento unânime da nação.

Recorrendo às lições de Roscoe Pound, digo que “a incessante transformação que se opera nas condições de vida social está sempre a exigir novas adaptações, em consequência da pressão de outros interesses sociais e de novas causas suscetíveis de prejudicar a segurança estabelecida. É assim necessário que a ordem jurídica seja flexível, por um lado, mas por outro também estável. Daí a necessidade de submetê-la continuamente a revisão e de adaptá-la às alterações que se operam na vida que deve reger… Conciliar a ideia de um sistema de direito fixo, que não deixe margem ao arbítrio individual, com as ideias de transformação, desenvolvimento e criação de um novo Direito”1.

Tenho muito medo dessa tão propalada intangibilidade das cláusulas pétreas, por implicar inadmissível engessamento do ordenamento jurídico, retardando o progresso que adviria a partir de uma reforma constitucional apta a tornar a Carta Magna mais atualizada ou consentânea à sociedade atual. Com todo respeito aos que entendem em sentido contrário, precisamos “perdoar” o nosso passado e comprometer-nos com o nosso futuro2.

Tratar cláusula pétrea como dogma significa impedir a comunidade de concretizar as suas próprias exigências de justiça, deturpando uma garantia fundamental e transformando-a em verdadeiro instrumento antidemocrático, a impor os valores de uma geração sobre as seguintes. Não se pode admitir que a vontade majoritária do passado se sobreponha, de forma absoluta, à vontade das maioria do presente e do futuro.

Um princípio constitucional, mesmo protegido por cláusula pétrea, pode ser objeto de ponderação e deverá ser pontualmente afastado se colocado em confronto ou colisão com outros princípios constitucionais de igual ou maior peso. Todo e qualquer direito ou garantia fundamental, quer veiculado através de regras ou de princípios, é passível de ponderação.

Partilho com Nelson Jobim a opinião de que “a petrificação contra a Constituição, quando as necessidades sociais possam determinar situações adversas, corresponde a empurrar os governos para a ilegalidade e para o golpe, no sentido de derrubar a Constituição para reformá-la. Isso, as Constituições, na sua manutenção e na sua plasticidade futura, não podem impor à sociedade” (Voto proferido quando ministro do STF, no julgamento da Adin 3.105/DF). Nessa mesma assentada, o então ministro Joaquim Barbosa colocou o dedo na ferida, afirmando que a teoria das cláusulas pétreas seria “uma construção intelectual conservadora, antidemocrática, não razoável, com uma propensão oportunista e utilitarista a fazer abstração de vários outros valores igualmente protegidos pelo nosso sistema constitucional. Conservadora porque, em essência, a ser acolhida em caráter absoluto, como se propõe nesta ação direta, sem qualquer possibilidade de limitação ou ponderação com outros valores igualmente importantes, tais como os que proclamam o caráter social do nosso pacto político, a teoria das cláusulas pétreas terá como conseqüência a perpetuação da nossa desigualdade. Constituiria, em outras palavras, um formidável instrumento de perenização de certos traços da nossa organização social. A constituição de 1988 tem como uma das suas metas fundamentais operar profundas transformações em nosso quadro social. É o que diz seu art. 3º, incisos III e IV. Ora, a absolutização das cláusulas pétreas seria um forte obstáculo para a concretização desse objetivo. Daí o caráter conservador da sua pretendida maximização”.

Um argumento final, a nosso ver apto a encerrar a controvérsia, em favor da possibilidade de se flexibilizar, através de emendas à Constituição, direitos e garantias fundamentais petrificados no § 4º do art. 60, pode ser extraído do nosso passado constitucional recente.

A Constituição anterior, de 1967 com a redação dada pela EC 1 de 1969, previa, como cláusulas pétreas, as formas federativa e republicana de governo, estabelecendo, expressamente, que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a Federação ou a República”. (Art. 47, § 1º). Entretanto, a EC 26, de 27 de novembro de 1985, que convocou a última Assembleia Nacional Constituinte, não estabeleceu qualquer tipo de limitação material, instituindo uma Constituinte “livre e soberana”, que chegou, inclusive, a admitir a abolição da República e restauração da Monarquia via plebiscito.

Em outros termos, a EC 26 simplesmente revogou cláusula pétrea prevista na Carta anterior, sem que tal fato jamais tivesse sido motivo de contestação por quem quer que seja.

Talvez tenha chegado a hora de a sociedade brasileira revisitar as suas escolhas do passado. Estamos diante de um conflito entre o passado e o futuro, entre a imutabilidade do que já passou3 e o desafio de construir um futuro melhor. Libertar o ordenamento jurídico do seu passado, sem tornar o seu futuro inseguro e instável é o objetivo a ser alcançado.

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1 POUND, Roscoe. Interpretations of legal history, 1946. Apud CAVALCANTI FILHO, Theóphilo. O problema da segurança no direito, p. 157-158.

2 Tomamos por empréstimo as palavras de François Ost: “Do lado do passado, o perigo de ficar fechado na irreversibilidade do já acontecido, um destino de erro ou infelicidade, por exemplo, condenado a perpetuar-se eternamente; por outro lado, do lado do futuro, o terror inverso que um futuro indeterminado suscita, já que a sua imprevisibilidade radical nos priva de qualquer referência. Aqui estão seguramente dois polos essenciais da regulação jurídica do tempo social: o perdão, entendido em sentido amplo, como essa capacidade da sociedade para ‘saldar o passado’: ultrapassá-lo ao estabelecê-lo, libertá-lo destruindo o ciclo sem fim da vingança e do ressentimento; a promessa, por outro lado, entendida em sentido amplo, como essa capacidade da sociedade para ‘creditar o futuro’, comprometer-se em relação a ele por meio de antecipações normativas que balizarão doravante o seu desenrolar”. ( OST, François. O tempo do direitoTrad. Maria Fernanda Oliveira. Lisboa: Instituto Piaget, 1999, p. 41-42).

3 O apego do Direito à manutenção de seu passado é assim sintetizado por Ost: “No direito, essa ‘manutenção’ está particularmente institucionalizada: há regras, princípios e procedimentos consagrados como autoridade durável, e por vezes, chega-se ao ponto de os querer pôr à margem de qualquer alteração. Todo o raciocínio sustentado pelos participantes na tradição jurídica parece ser devedor do passado. Com efeito, no seio dessa tradição, justificar uma solução consiste em mostrar a sua compatibilidade com o material que faz autoridade. A motivação da decisão judiciária é exemplar a este respeito: por muito inovadores que os juízes sejam, será sempre preciso que a interpretação preconizada apresente uma ligação plausível à tradição institucionalizada, aos ‘lugares-comuns’ do argumentário jurídico”. (Op. cit., p. 65).

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