O art. 977 do Código Civil permite que cônjuges sejam sócios entre sí, em sociedade contratual, apenas quando casados nos regimes de comunhão parcial, separação convencional de bens e participação final dos aquestos.
A Lei não excepciona nenhum tipo societário, nem se limita às sociedades empresárias, de modo que a restrição atinge tanto as sociedades simples, como as empresárias. Entretanto, não há óbice a que os cônjuges casados na comunhão universal ou na separação obrigatória adquiram ações de uma mesma companhia. Logo, a proibição legal não pode atingir as sociedades anônimas de capital aberto. A expressão “contratar sociedade” deixa antever a delimitação da restrição às sociedades de pessoas, que são formadas em função das pessoas dos sócios (sociedade simples, sociedade em nome coletivo, sociedade em comandita simples e sociedade limitada).
Nas sociedades de capitais (sociedade anônima e sociedade em comandita por ações), nas quais inexistem relações pessoais entre os sócios e que se formam em razão da reunião do capital, sem levar em consideração as pessoas dos sócios, não faz sentido a vedação. Os acionistas da companhia aberta, especialmente aqueles que não participaram da fundação, se limitam a adquirir parcelas representativas do capital, não estando, por isso, alcançados pela proibição. O mesmo raciocínio pode ser empregado às sociedades cooperativas, onde é livre o ingresso de sócios cooperados e inexiste restrição na lei específica (Lei n. 5.764/1971).
A vedação também não retroage para alcançar as sociedades já constituídas antes da entrada em vigor do Código Civil (11.01.2003), obrigando ao seu desfazimento ou tornando-as irregulares. Normas restritivas não se expandem, têm de receber interpretação estrita e não podem, muito menos, projetar-se para o passado. Ressalte-se que esse entendimento, manifestado anteriormente em outra publicação de minha autoria, restou acolhido pelo então Departamento Nacional de Registro do Comércio – DNRC –, em parecer assim resumido: “A norma do artigo 977 do CC proíbe a sociedade entre cônjuges tão somente quando o regime for o da comunhão universal de bens (art. 1.667) ou da separação obrigatória de bens (art. 1.641). Essa restrição abrange tanto a constituição de sociedade unicamente entre marido e mulher, como destes junto a terceiros, permanecendo os cônjuges como sócios entre si. De outro lado, em respeito ao ato jurídico perfeito, essa proibição não atinge as sociedades entre cônjuges já constituídas quando da entrada em vigor do Código, alcançando, tão somente, as que viessem a ser constituídas posteriormente. Desse modo, não há necessidade de se promover alteração do quadro societário ou mesmo da modificação do regime de casamento dos sócios-cônjuges, em tal hipótese”.
No mesmo sentido, o Enunciado n. 204 da III Jornada de Direito Civil: “A proibição de sociedade entre pessoas casadas sob o regime da comunhão universal ou da separação obrigatória só atinge as sociedades constituídas após a vigência do Código Civil de 2002”. Na III Jornada, foram adotadas as seguintes interpretações sobre o art. 977: “1) a vedação à participação de cônjuges casados nas condições previstas no artigo refere-se unicamente a uma mesma sociedade; 2) o artigo abrange tanto a participação originária (na constituição da sociedade) quanto derivada, isto é, fica vedado o ingresso de sócio casado em sociedade de que já participa o outro cônjuge” (Enunciado n. 205). Finalmente, na III Jornada de Direito Comercial, foi aprovado o Enunciado n. 94, esclarecendo que “a vedação da sociedade entre cônjuges contida no art. 977 do Código Civil não se aplica às sociedades anônimas, em comandita por ações e cooperativa”.
O art. 977 somente alude ao casamento, por isso, a restrição não se aplica à união estável, entidade familiar diversa do casamento. Por mais que se outorguem direitos e deveres aos conviventes, não se cogita de uma equiparação total, absoluta e irrestrita entre cônjuge e companheiro, mas uma equiparação seletiva, somente no tocante às chamadas “normas de solidariedade”, a exemplo do direito a alimentos, do direito de comunhão de aquestos, de acordo com o regime de bens, e do direito à concorrência sucessória em igualdade de condições com o cônjuge.
Por outro lado, nega-se a equiparação referente às ditas “normas de formalidade”, tais como as formas de constituição e dissolução da união estável e do casamento, o procedimento para a alteração do regime de bens, necessariamente judicial no casamento e extrajudicial na união estável (art. 1.639, § 2º, do CC e art. 734 do CPC/2015) e a obrigatoriedade de outorga conjugal para a prática de determinados atos, exclusiva para o casamento e dispensada na união estável. O princípio da isonomia não proíbe que entidades familiares distintas, não obstante igualmente protegidas pelo Estado, possuam regramentos legais diferenciados. Direitos e deveres do par casamentário podem ser diversos daqueles existentes entre o par convivencial. Da mesma forma que os conviventes septuagenários podem converter a união estável em casamento, com a opção por qualquer dos regimes de bens, não encontrando-se jungidos ao regime da separação obrigatória etária (art. 1.640, II), desde que iniciada a união estável antes de atingirem a idade limite, também nesses casos podem manter a sociedade que contrataram antes do casamento, durante a convivência, ainda que tenham optado, na conversão, pelo regime da comunhão universal ou seguido o regime legal de separação obrigatória, sob pena de se impor manifesto desestímulo à própria conversão da união estável em casamento.
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Mário Luiz Delgado é doutor em Direito Civil pela USP, mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP, especialista em Direito Processual Civil pela UFPE, diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), presidente da Comissão Nacional de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), professor dos cursos de pós-graduação das Escolas da Advocacia e da Magistratura, advogado e parecerista, membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC). Foi assessor, na Câmara dos Deputados, da relatoria-geral do projeto de lei que deu origem ao novo Código Civil Brasileiro. Autor e co-autor de livros e artigos jurídicos.
Artigo publicado na Revista Consultor Jurídico, conjur.com.br