Qualquer profissional do direito sabe, ou deveria saber, que os artigos de um código devem ser interpretados sistemicamente. É a falta dessa elementar orientação hermenêutica, diz o mestre Miguel Reale, “que explica certas interpretações errôneas da nova Lei Civil, dando lugar a imperdoáveis estultices, sobretudo em matéria de sociedades limitadas”.
Essas estultícies, ou invencionices divulgadas fartamente, vêm trazendo incertezas e insegurança para os empresários deste País. Não podemos nos esquecer que o maior número das sociedades empresárias é formado pelas agora denominadas sociedades limitadas, anteriormente chamadas sociedades por quotas de responsabilidade limitada, as quais têm o mais amplo campo de abrangência, desde microempresas e empresas de pequeno porte até as grandes empresas holding.
Uma das novidades mais importantes desse novo Código reside exatamente na disciplina das sociedades limitadas. Entre as várias mudanças extremamente relevantes na vida das limitadas, destaca-se, em primeiro lugar, como ressalta o mestre Reale, “a distinção entre sociedades limitadas de grande envergadura, com mais de dez sócios – para as quais são previstos órgãos como o conselho fiscal e a assembléia-geral -, e as sociedades com menos de dez sócios, as quais decidem em reunião de sócios, e não em assembléia, a qual somente é obrigatória se o número dos sócios for superior a dez, de conformidade com o parágrafo 1.º do artigo 1.072”. (idem)
Para essas sociedades menores, não há qualquer exigência nova que dificulte ou inviabilize o seu funcionamento. Não estando obrigadas a realizar assembleias, também não estarão compelidas a publicar editais de convocação. No tocante às pequenas e micro empresas o Código assegura tratamento simplificado e diferenciado (art. 970) e ainda dispensa os procedimentos de escrituração (art. 1.179), sendo, nesse ponto, até mais avançado que a Lei do Simples, que ainda continua a exigir o Livro Diário.
Entretanto, advogados apressados, alguns poucos levados pelo único objetivo de confundir para lucrar, estão a assustar o empresariado nacional, afirmando que seriam criados graves embaraços às sociedades limitadas de reduzido capital, exigindo a criação de conselho fiscal, quando o Código diz que é mera faculdade, “ou sujeitando-as a gravosas despesas, como, por exemplo, a publicação de seu balanço em jornais de grande circulação, o que é pura invencionice” (idem).
Ressalte-se que, no que tange a balanços, inexiste obrigatoriedade de publicação, nem mesmo para as limitadas de grande porte. As únicas sociedades obrigadas pelo Código a publicar balanços são as sociedades estrangeiras, o que já estava previsto na legislação anterior. Fora essa hipótese, nenhuma sociedade disciplinada pelo novo Código (as anônimas estão em lei especial) tem obrigação de publicar balanço.
Quanto às sociedades limitadas com mais de 10 sócios, dizem os críticos que a nova lei prevê formalidades especiais para convocação das assembléias, mas “esquecem” de dizer que elas são dispensáveis “quando todos os sócios comparecerem ou declararem por escrito, cientes do local, data e ordem do dia”. Por outro lado, de acordo com o parágrafo 3.º do artigo 1.072, “a reunião ou a assembléia tornam-se dispensáveis quando todos os sócios decidirem, por escrito, sobre a matéria que seria objeto dela”.
Em matéria de deliberação de sócios nas sociedades limitadas, alfineta o Professor Reale, “o que, realmente, incomoda certos críticos é a possibilidade de serem convocadas reuniões ou assembleias “por sócio, quando os administradores retardarem a convocação por mais de sessenta dias, nos casos previstos em lei ou no contrato”, e também “por titulares de mais de um quarto do capital social, quando não atendido, no prazo de oito dias, pedido de convocação fundamentada, com indicação das matérias a serem tratadas”.
Outro ponto bastante criticado é a exigência de quoruns qualificados para tomada de certas deliberações da sociedade limitada, como é o caso do quorum de 2/3 para nomeação de administrador não-sócio (ou de unanimidade enquanto o capital não estiver integralizado) ou ainda o quorum de ¾ para alteração do contrato social.
No que se refere à nomeação de administrador não- sócio, o art. 1061 realmente exige a deliberação da unanimidade dos sócios, sempre que o capital não estiver integralizado (Se o capital estiver integralizado, o quorum é de 2/3). Esse quorum de unanimidade, aparentemente excessivo, se justifica, uma vez que, sendo os sócios solidariamente responsáveis pela integralização do capital, qualquer deles pode manifestar o legítimo interesse em se opor à designação de um estranho como administrador.
Trata-se, como facilmente se constata, de mecanismos destinados à proteção das minorias, que, de outra forma, não teria como salvaguardar seus interesses.
Alega-se que, com as novas regras, serão aumentadas as despesas com administração, mas essa objeção, rebate Miguel Reale “é de um ridículo espantoso, sendo própria dos que querem ter mãos livres para usar e abusar das posições de mando”, o que o novo Código passa a coibir expressamente.
Outro ponto que vem sendo objeto de crítica, tão atroz, quanto insana, é a regra constante do art. 1.134 que exige autorização governamental para as sociedades estrangeiras atuarem no País, exceto como sócias de sociedade anônima nacional, onde a autorização é dispensável. Passaram alguns ditos especialistas em direito societário a sustentar que, a partir de agora, nenhuma sociedade estrangeira poderia mais participar de sociedade limitada brasileira (apenas de sociedade anônima), o que configura mais uma estultice.
O art. 1.134 repete exatamente a mesma regra que já constava do art. 64 do Decreto-Lei nº 2.627/40 (antiga Lei das S/A), que nesse ponto esteve em vigor até 11/01/2003. E durante todo esse período nunca nenhum desses “juristas” ousou sustentar que sociedade estrangeira não poderia ser quotista de sociedade limitada brasileira. O que estabelece o art. 1.134, em seu caput, é que a sociedade estrangeira, qualquer que seja o seu objeto, só poderá funcionar no País com a autorização do Poder Executivo, salvo se pretender tornar-se acionista de sociedade anônima brasileira, hipótese em que a autorização governamental é prescindível. Não se quer dizer que a sociedade estrangeira não possa, por exemplo, ser quotista de sociedade limitada brasileira, mas apenas que necessitaria de autorização para isso, o que, aliás, como já afirmei, era exigido pelo art. 64 da antiga Lei das S/A. Portanto, nada impede que uma empresa estrangeira participe de uma sociedade limitada constituída no País, salvo os casos especiais, onde a Lei especialmente requer que, em determinadas atividades, o tipo societário seja o de sociedade anônima.
Invencionice também divulgada largamente é a de que marido ou mulher que fossem sócios em uma mesma empresa teriam, um ou outro, que sair da sociedade. Ora o art. 977 não proíbe a sociedade entre cônjuges em todas as hipóteses, mais apenas quando o regime for o da comunhão universal ou da separação obrigatória(obrigatória para os que casam com mais de 60 anos). No primeiro caso porque a sociedade seria fictícia, já que as contribuições de ambos seriam comuns. No segundo caso a vedação busca evitar que a sociedade sirva para burlar a separação obrigatória dos bens de cada cônjuge. Importante registrar que a vedação não atinge as sociedades constituídas antes da entrada em vigor do Código. Já aquelas que venham a ser constituídas posteriormente não poderão contar, em seu quadro societário, com marido e mulher casados no regime da comunhão universal ou da separação obrigatória de bens. Se casados no regime da comunhão parcial ou no da separação absoluta, poderão os cônjuges, normalmente, contratar sociedade entre si ou com terceiros.
E para aqueles que, estando casados em um dos dois regimes em que o Código veda a contratação de sociedade, queiram, ainda assim, tornarem-se sócios, resta a possibilidade de mudança do regime de bens, na forma do § 2º do art. 1.639.
Finalmente destaco outra leitura incorreta que tem sido feita, no sentido de que o art. 1158, § 2º, estaria obrigando a sociedade limitada a alterar a sua denominação, para nela fazer constar o seu objeto social. Chegaram alguns a difundir a notícia de que o Código teria acabado com o chamado “nome de fantasia”, obrigando as empresas a fazerem modificações até mesmo na sua marca, o que de tão absurdo, beira a insanidade. Reza o dispositivo citado, tão somente, que “a denominação deve designar o objeto da sociedade”. Não se exige alteração no nome de fantasia, que continua a existir normalmente. A alteração será feita apenas no contrato social, para incluir a referência ao objeto social. E nos casos em que esse objeto for extenso demais, como nos casos em que a sociedade exerça uma ampla gama de atividades, bastará fazer referência ao objeto ou atividade principal, não havendo o Código determinado a transcrição integral, na denominação social, da cláusula contratual designativa do objeto da sociedade, como alguns “jovens especialistas” tem sustentado.
Publicado em: JusNavegandi