O dano, como sabemos, consiste em uma lesão a um interesse juridicamente protegido, quer seja a destruição ou deterioração de uma coisa inanimada, quer seja a ofensa à integridade física ou moral de uma pessoa. Na relação paterno-filial os pais podem provocar danos à integridade física e moral dos filhos, a exemplo do castigo imoderado, do cárcere privado e do abuso sexual, que são ofensas à dignidade humana susceptíveis de reparação[1].
Na relação gestante-nascituro, os danos mais comuns são o dano genético e o dano pré-natal.O dano genético pode ser compreendido como uma agressão aos genes do nascituro que tenha afetado o seu genoma e provocado consequências que impossibilitem, dificultem ou reduzam a qualidade de vida da pessoa nascida, podendo resultar de contaminação por substâncias tóxicas ou radioativas ocorrida durante a gravidez (teratógenos) ou ainda da condição hereditária de ambos os pais.[2]
Pessoas portadoras de determinados fatores de risco possuem maior potencial de conceberem filhos com malformação genética[3]. Por isso, a lei exige dos colaterais de terceiro grau exame médico preventivo para que possam contrair matrimônio entre si (Decreto-Lei nº 3.200/41). Mulheres com idade mais avançada, para engravidar, precisam de cuidados médicos muito maiores do que aquelas mais jovens[4]. Algumas doenças são transmissíveis dos pais para o filho. Em muitas situações, existe tratamento e o risco pode ser evitado[5]. Em outras, é a gravidez que deve ser evitada. O contrário seria admitir que alguém pudesse realizar um projeto parental para satisfação de suas exclusivas e egoísticas aspirações, sem qualquer preocupação com a saúde e a qualidade de vida do filho a ser gerado.
Sabendo ou devendo saber dos fatores de risco, os pais mostram-se negligentes quando deixam de procurar um especialista antes da gravidez, para realizar o histórico clínico do casal. A conduta responsável e esperada, no caso, é consultar um profissional para ter o aconselhamento genético, de modo a evitar a concepção de um filho com malformação congênita[6].
O dano pré-natal, por sua vez, é causado exclusivamente por fatores ambientais, normalmente condutas inapropriadas ou imprudentes adotadas pela gestante durante a gravidez, expondo a risco o nascituro. Entre as mais comuns, podemos mencionar a ingestão de determinadas substâncias, como é o caso da cocaína, do fumo e do álcool, aptas a prejudicar o desenvolvimento ou a comprometer a saúde do nascituro, ou ainda interferir negativamente na qualidade de vida após o seu nascimento.
Silma Mendes Berti, em sua acurada pesquisa, refere-se a estudos científicos comprobatórios de que “o consumo de cocaína pela mulher, durante a gravidez, pode causar diversas complicações: contrações uterinas prematuras, abortos espontâneos; diretamente, no feto, foram comprovados, dentre outros males, o retardo no crescimento, anomalias congênitas, malformações cardíaca e urogenital e anomalias nos membros. Os estudos comprovam ainda que uso de cocaína pode provocar o nascimento de crianças com cérebros deformados em decorrência de lesões hemorrágicas (…) Os efeitos do álcool não são menos perniciosos. O consumo de álcool comporta um risco elevado de malformações congênitas, associada a retardo de crescimento, disfunção do sistema nervoso central, malformações faciais e cardiopatias congênitas. A síndrome do alcoolismo fetal é considerada importante causa de malformações congênitas e retardos mentais (…) O fumo é outra droga que inquieta. Em mulheres que fumam durante a gravidez constatam-se, além de outros males, partos prematuros e principalmente nascimento de crianças de baixo peso”[7].
Uma indagação que habitualmente arrosta esse tema é saber se as técnicas tradicionais, em matéria de responsabilidade civil, são suficientes e adequadas à reparação desses novos danos, ocorrentes no âmbito das relações materno-filiais. Em outras palavras: o fundamento da responsabilidade civil será o mesmo quando a vítima do dano for o nascituro e o agente causador a mãe e gestante?
Entendo que sim. A gravidez e a maternidade certamente constituem os maiores privilégios concedidos pela natureza ao ser humano do sexo feminino. Aceitá-las requer sacrifícios e ciência dos escolhos ao longo de uma jornada de nove meses. Máximo bônus, sumo ônus. O que implica, para a mãe, abster-se de muitos direitos em favor do filho que espera e, acima de tudo, reconhecer que os conflitos gerados na relação mãe e filho, enquanto gestante e nascituro, devem razoavelmente pender para o inerme, o vulnerável, o incapaz de se defender ou de clamar por socorro e que não pediu para nascer[8].
Todos os direitos inerentes à pessoa humana, nascida ou concebida, devem ser tutelados dentro do núcleo familiar, sobretudo nas relações materno-filial, e a quebra de quaisquer desses direitos poderá caracterizar dano moral indenizável. O Código Civil de 2002 trouxe norma específica e genérica de tutela dos direitos da personalidade, consubstanciada no artigo 12[9].O dispositivo versa sobre os mecanismos de tutela dos direitos da personalidade, tanto na prevenção e cessação da lesão quanto na reparação dos possíveis danos daí advindos. Abriu-se aqui a possibilidade de cumulação dessas medidas com pedido de perdas e danos e com quaisquer outras sanções previstas em leis especiais[10].
Finalmente, resta saber se o nascituro poderá deduzir essa tutela contra a genitora e gestante, enquanto nascituro, ou se o filho poderá deduzir posteriormente a tutela contra os pais por danos causados durante a vida intrauterina ?
A resposta é afirmativa. Não vemos como se possa estabelecer qualquer tipo de restrição, salvo aquelas previstas em lei e referentes à capacidade e legitimidade processuais. Fora disso, não existe óbice a que o filho, nascido ou nascituro, possa valer-se de todas as medidas para defesa de seus direitos da personalidade, incluindo a pretensão de reparação civil.
O filho nascido e maior ou emancipado poderá deduzir de forma autônoma a pretensão de reparação civil contra a mãe, tão logo alcance a plena capacidade civil (CC, art. 197, II). Enquanto incapaz, o filho nascido só poderá propor a ação representado ou assistido.
Já o nascituro tem legitimidade para propor a ação através do outro representante legal, no caso o pai, ou de curador especial. A curatela do nascituro pressupõe a prévia interdição ou destituição do poder familiar da gestante[11].
Também nada pode obstaculizar ao Ministério Público, como legitimado extraordinário, à luz da dicção final do artigo 127 da CF, que o habilita a demandar em prol de interesses indisponíveis, combinado com o artigo 201, incisos III e VIII do ECA,[12] propor as medidas pertinentes para fazer cessar a ameaça contra a integridade biofísica do feto[13], aí incluídas, entre outras, a destituição do poder familiar, a interdição e a internação compulsória e provisória da mãe, para interromper a ingestão de substâncias ou prática de condutas que coloquem em risco a vida e à saúde do nascituro ou ainda para compelir a gestante a se submeter a tratamento médico necessário à garantia dos direitos do concepto.
Ao nascituro vítima do dano genético ou do dano pré-natal, como a qualquer outro membro da família, não pode ser subtraído o direito à reparação integral tão somente porque o agente causador foi a sua própria mãe. O ordenamento jurídico brasileiro não alberga imunidade ou inimputabilidade à gestante que, de forma culposa ou dolosa, ocasionar qualquer espécie de dano ao nascituro. A doutrina da imunidade parental, muito aplicada nos países de common law até meados do século passado e segundo a qual a preservação da harmonia familiar deveria se sobrepor a toda e qualquer compensação eventualmente devida pelos pais aos filhos, encontra-se em franco declínio[14].
É preciso, apenas, demonstrar o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil: a ação ou omissão que viola direito, ligada, pelo nexo causal, ao dano à integridade física ou psíquica do nascituro. Só não haverá que se falar, por ausência de previsão legal, em responsabilidade objetiva. A investigação da culpa em sentido lato é fundamental. Mister identificar no fato concreto qual foi a ação ou omissão negligente ou imprudente da gestante que violou direito do nascituro, demonstrando sua ligação com o dano, bem como a inexistência das excludentes clássicas de responsabilidade civil, como o estado de necessidade, a força maior e a culpa exclusiva de terceiro.
[1] Cf. BAPTISTA, Silvio Neves. Teoria geral do dano. São Paulo: Atlas, 2003, p. 122.
[2] Os chamados teratógenos são agentes ambientais que, agindo na gestante, tornam-se passíveis de acarretar malformação congênita no nascituro. São produtos com elevado potencial de lesar células do embrião e provocar alteração em seus cromossomos.
[3] “Quando um ou os dois membros do casal são portadores de uma anomalia genética ou conceberam um filho com uma doença de transmissão hereditária, a gravidez é igualmente classificada de alto risco. A gravidade destes antecedentes varia segundo o tipo de problema. Em alguns casos, como acontece com a fibrose cística, a fenilcetonúria e a talassemia, o problema apenas se manifesta quando os dois pais são portadores da anomalia genética que o provoca, mesmo que nenhum dos dois seja afetado, algo que é muito comum. Todavia, noutros casos, basta que um dos dois pais seja portador da anomalia genética, independentemente de ser ou não afetado pela anomalia genética, para que a gravidez seja considerada de alto risco, como por exemplo, em caso de coreia de Huntington e osteogénese imperfeita. Deve-se igualmente fazer referência à especificidade da hemofilia e de outras doenças provocadas por anomalias no cromossoma sexual X, pois costumem ser portadoras destas anomalias genéticas, o problema afeta quase exclusivamente os filhos do sexo masculino”. (Disponível em: http://www.medipedia.pt/home/home.php?module=artigoEnc&id=747#sthash.AeCRjusU.dpuf. Acesso em: 30/01/2015)