Quais os limites mínimos do tipo de conhecimento tecnológico a ser exigido do operador do Direito na sociedade da informação?
É correto afirmar que ao jurista deve ser exigido o conhecimento mínimo da arquitetura técnica do espaço virtual, de modo, não só a saber se movimentar em tal ambiente, mas sobretudo para orientar a aplicação dos diversos instrumentos normativos. Concordamos com Ronaldo Lemos quando afirma que “de nada adianta ao jurista debruçar-se sobre o problema da privacidade na internet se ele desconhece o significado normativo da criação de um protocolo como o P3P, que permite inserir, na própria infra-estrutura das comunicações online, comandos normativos de filtragem que bloqueiam ou permitem a passagem de conteúdo, sendo auto-executáveis e, muitas vezes, imperceptíveis para o usuário”1.
Entretanto, quais os limites mínimos do tipo de conhecimento tecnológico a ser exigido do operador do Direito na sociedade da informação? Pensar o Direito no espaço virtual pressupõe o conhecimento de todas as tecnologias relacionadas ? Devem os juristas se transformar em “novos programadores”?
Noticiou a impressa com certo destaque um julgamento do STJ que rejeitou a pretensão de um internauta de não receber spams de uma casa noturna promotora de shows destrip-tease. Por maioria, os ministros entenderam que o usuário da internet nada pode fazer diante dos vários e-mails indesejados que recebe. Entretanto, o que chamou a atenção nesse julgamento, segundo o Jornal O Estado de São Paulo, foi que “as discussões mostraram completo desconhecimento de alguns ministros do assunto que estavam discutindo. A ponto de o presidente da Turma, Fernando Gonçalves, confidenciar: ‘Não sei nada de computador e nem quero saber’“2.
Até que ponto esse tipo de “desconhecimento” compromete o conteúdo de uma decisão judicial ou de qualquer opinio juris que venhamos a proferir? Uma das maiores juristas vivas do Brasil, a professora Maria Helena Diniz, jamais teve contato com um pc, de qualquer modelo, ou de qualquer geração. Até onde estaremos obrigados a conhecer as tecnologias do espaço virtual?
Claro que o material normativo e a técnica jurídica devem se adaptar às novas realidades, o que não significa abandonar por completo a análise jurídica tradicional, nem muito mesmo deixar de buscar no ordenamento jurídico posto as normas jurídicas aplicáveis às ocorrências do espaço virtual, ainda que tais ocorrências encontrem-se desprovidas de qualquer precedente histórico, como afirma Lemos. O autor questiona a “manutenção dessas estruturas normativas tradicionais”, ou seja, “se a nova realidade deve adaptar-se ao velho direito ou se o velho direito deve adaptar-se à nova realidade”3.
Com a máxima vênia, realidade alguma se adapta ao Direito. A propósito, pertinentes e sempre atuais as palavras de Jean Cruet: “Nous voyons tous les jours la société refaire laloi, on n’a jamais vu la loi refaire la société“4.
Já tivemos a oportunidade de afirmar em outros escritos que o Direito atua como um organismo vivo, concebido à imagem e semelhança da sociedade que o produziu. E esse sistema vivo é diuturnamente construído e reconstruído por seus exegetas. Uma mesma norma jurídica pode ser interpretada de uma forma ou de outra, de acordo com os valores vigentes numa dada sociedade. Esse processo de adaptação normativa compete ao jurista, responsável por compensar a lentidão natural do processo legislativo, realizando, ele mesmo, a adaptação do direito posto às novas realidades.
Interpretando o direito posto e considerando o arcabouço normativo, doutrinário e jurisprudencial existente, é perfeitamente possível solucionar as demandas verificadas a partir da replicação das relações jurídicas no espaço virtual, sem necessidade de se discutir o surgimento de um “direito novo”, nem muito menos sem a obrigação de conhecermos todas as minúcias das novas tecnologias.
A questão, a nosso ver, resume-se, portanto, ao redimensionamento ou atribuição de novas aplicações às estruturas normativas já existentes. Pelo menos em tema de responsabilidade civil. Nas lúcidas palavras de Silvio Venosa, “cabe ao jurista enfrentar os novos problemas que na verdade são velhos temas com novas roupagens, mormente no tocante à responsabilidade civil”5.
Em suma, ainda que mude o ambiente espacial ou dimensional onde as relações jurídicas ocorrem, o tratamento legal não pode ser alterado em sua substância. A mudança espacial não implicará em diferenciação ontológica. Os princípios que incidirão nas relações virtuais serão aqueles relacionados ao ramo do Direito melhor condizente com o tipo de relação jurídica de que estejamos a tratar (direito civil, direito do consumidor, direito penal, etc).
O debate em torno do surgimento de um novo ramo do Direito, por outro lado, causa preocupação pelo risco de perda da visão global de uma teoria geral do Direito, substituída por um novo tipo de “particularismo jurídico”. No lugar do civilista ou do comercialista tradicional, surge o “especialista em direito digital”. E a tendência natural de qualquer ordem particularista é que esse “especialista” passe a tentar impor as suas idéias de qualquer forma, ainda que à custa da supressão de qualquer confronto dialético. Esse novo jurista, segundo Ricardo Lorenzetti, “se converte em militante do microssistema (….) tendem a perder a imparcialidade, se transformam em militantes de verdades parciais. O mesmo ocorre com o juiz, quando deve decidir a cerca de problemas ambientais ou de consumo; também ele é consumidor e está sendo prejudicado como ser vivo. A verdade que se expressa é subjetiva, particularizada (…) O douto em Direito torna-se, pouco a pouco, um ‘exegeta’, um tradutor da lei especializada”6.
Para completar, esses novos especialistas, militantes da autonomia, passam a se utilizar de uma linguagem própria, criada por eles. Nas palavras do professor José de Oliveira Ascensão, “é típica deste domínio a utilização de expressões gongóricas, anfibológicas e imagísticas”7. Ou ainda no “desabafo” de Newton De Lucca: “Quanta verborragia, quanta superficialidade e quanta pedanteria foram apresentadas em Seminários, Simpósios e quejandos, com ares do mais profundo cientificismo”8.
Trata-se de uma linguagem artificial, anglófila, um novo “esperanto” que somente os “iniciados” conhecem. Linguagem hermética e não inclusiva, que em nada contribui para a inclusão digital da população como um todo.
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1 LEMOS, Ronaldo. Direito, tecnologia e cultura, p. 9.
2 Resp 844736
3 Op. cit., p. 7.
4 CRUET , Jean. A vida do direito e a inutilidade das leis. Lisboa: José Bastos & C.ª – Typographia de Franccisco Luiz Gonçalves, 1908, p. 1.
5 VENOSA, Sílvio de Salvo. “Direito civil: responsabilidade civil”. 4. v., 3. ed., São Paulo: Atlas, 2003, p. 191.
6 LORENZETTI, Ricardo. Fundamentos do direito privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. 56.
7 Apud LUCCA, Newton. Títulos e contratos eletrônicos: o advento da informática e suas conseqüências para a pesquisa jurídica. In:Direito & internet: Aspectos jurídicos relevantes. Coord. Newton De Lucca e Adlaberto Simão Filho.São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 34.
8 Idem.
Publicado em: Migalhas