O Direito das Sucessões em ebulição no Congresso Nacional

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O Direito das Sucessões em ebulição no Congresso Nacional

Não é de hoje que o nosso Direito das Sucessões clama por reformas. As grandes inovações que transformaram, nas duas primeiras décadas do século 21, a face do Direito de Família não se refletiram na sucessão hereditária. A verdade é que o Código Civil de 2002, em matéria de direitos sucessórios, já estava desatualizado desde a sua entrada em vigor. Temos regras excessivamente formalistas voltadas a um modelo de família casamentária, patriarcal e patrimonialista. A discriminação que se fazia em relação aos outros modelos familiares, quando comparados ao casamento, era notória, a ponto de o Supremo Tribunal Federal haver declarado a inconstitucionalidade da diferenciação dos regimes sucessórios do casamento e da união estável (CC, artigo 1.790).

Fato é que o Direito das Sucessões não conseguiu acompanhar, pelo menos na mesma velocidade, as transformações verificadas no Direito de Família nos últimos anos, desde a desbiologização da paternidade, ao lado do reconhecimento da filiação socioafetiva e da multiparentalidade, passando pela isonomia e pluralismo das entidades familiares, com a primazia do afeto como fonte do parentesco; da mesma forma que não acompanhou os avanços da tecnologia, mantendo uma base analógica inapropriada às demandas de uma sociedade digital.

Exatamente por isso, diversas propostas legislativas foram apresentadas, com o intuito de fornecer uma regulação jurídica mais adequada para as novas realidades que emergem da sucessão hereditária. A mais abrangente delas, sem dúvida alguma, é o PL n° 3.799/2019 [1], de autoria da senadora Soraya Thronicke, desenvolvido em conjunto com a Comissão de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), que tenho a honra de presidir, e que se encontra em tramitação no Senado Federal. Esse projeto dialoga com os novos tempos por meio dos três eixos principais em que restou estruturado: 1) modernização; 2) maior autonomia privada; e 3) desjudicialização. No primeiro eixo, está sendo proposta uma atualização profunda das regras sucessórias, para compatibilizá-las com os avanços tecnológicos e sociais. Surge, assim, o testamento em vídeo e o testamento em Libras, a equalização dos direitos sucessórios entre casamento e união estável, o reconhecimento da socioafetividade como fonte do parentesco e, por consequência, também dos direitos sucessórios etc. No segundo eixo amplia-se a autonomia privada de quem é o dono do patrimônio, o que deve contribuir para popularizar, entre nós, a sucessão testamentária, além de facilitar e conferir maior segurança jurídica às operações de planejamento sucessório. E finalmente no terceiro eixo, tenta-se desburocratizar o inventário, admitindo-se o uso do inventário administrativo, mesmo em havendo testamento ou herdeiros menores e incapazes, ao mesmo tempo em que se institui um procedimento administrativo e extrajudicial para o registro, abertura e cumprimento dos testamentos.

Na Câmara dos Deputados, por sua vez, acabou de ser votado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, em regime de tramitação conclusiva, o Projeto de Lei nº 5.820/2019, dando nova redação aos artigos 1.862, 1.864, 1.876 e 1.881 do CC, para dispor sobre o testamento e o codicilo digitais, realizados mediante gravação de som e imagem e assinados por meio eletrônico [2]. O texto aprovado estabelece que o ato de última vontade deverá ser gravado em formato de mídia compatível com os programas computadorizados de leitura existentes na data da efetivação do ato, contendo a qualificação do interessado, bem como a declaração de que no vídeo consta o testamento ou codicilo, além de registrar a presença de duas testemunhas, as quais estarão dispensadas, exclusivamente no codicilo cujo objeto se restrinja a bens digitais, tais como vídeos, fotos, livros, senhas de redes sociais, e outros elementos armazenados exclusivamente na rede mundial de computadores. O projeto ainda permite que a pessoa com deficiência utilize a Língua Brasileira de Sinais (Libras) ou qualquer outra forma de comunicação oficial, compatível com a limitação que apresenta.

Sem demérito à inciativa legislativa, de autoria do deputado Elias Vaz, não posso deixar de consignar que nenhuma dessas alterações configura novidade, pois já constavam expressamente do aludido PL n° 3.799/2019, de onde transcrevo o seguinte trecho atinente ao testamento em vídeo:

“Quanto à redução das formalidades, o anteprojeto propõe permitir a utilização de recursos de audiovisual para a feitura do testamento, o que representa grande incentivo para popularizar seu uso, sem comprometer os valores da certeza e da segurança. A permissão para que o ato fosse elaborado por processo mecânico, utilizando-se o computador e quaisquer outros recursos tecnológicos congêneres, já existia desde janeiro de 2003. Com este projeto, abre-se uma nova possibilidade de uso de recursos tecnológicos, precisamente o audiovisual. Na quadra em que vivemos, no que se convencionou chamar de sociedade da informação, em que tais recursos são amplamente admitidos como meio de prova em quaisquer instâncias, não seria mais aceitável desconhecê-los como instrumentos válidos de elaboração do testamento. O sistema de audiovisual oferecerá uma maior segurança a respeito do conteúdo das disposições testamentárias, pois estaremos ouvindo a própria voz do testador. É o testador quem vai explicar a sua última vontade, o que vai reduzir a necessidade de utilização de recursos hermenêuticos para a interpretação do testamento. O texto escrito muitas vezes é ambíguo. As palavras, quando desprovidas da entonação adequada, comportam significados diversos. O intérprete do testamento, com frequência, enfrenta grandes obstáculos na pesquisa do desejo derradeiro do de cujus. A utilização do sistema de audiovisual deve eliminar essas dificuldades, facilitando a concretização do princípio da prevalência da vontade do testador, previsto no artigo 1.899 do Código Civil. E assim, com menor risco e maior certeza, o ato de última vontade atingirá a sua finalidade”.

O formalismo e a solenidade do ato de testar garantem a segurança do testamento e a fidelidade da vontade do testador. Adotadas as cautelas ora previstas, nenhum registro poderia ser mais fiel à última vontade do autor da herança do que aquele feito em sistema de audiovisual.

O PL 5.820 deve seguir agora ao Senado Federal, onde imagino possa ser apensado ao PL 3.799. Ainda na Câmara Federal, foram recentemente apresentados os Projetos de Lei nº 3.572/2021 [3] e nº 3.634/2021 [4]. O primeiro acrescenta um parágrafo único ao artigo 1.810 do CC, de modo a compatibilizar o dispositivo com o Enunciado nº 575 do Conselho da Justiça Federal, segundo o qual, na concorrência de herdeiros de classes diversas, a renúncia de qualquer deles devolve sua parte aos que integram a mesma ordem dos chamados a suceder. O segundo oferece nova redação ao caput do artigo 1.814, para excluir da sucessão, não apenas os herdeiros ou legatários que praticarem atos de indignidade, mas também os sucessores do herdeiro indigno, os quais, na disciplina atual, sucedem no lugar do excluído. O projeto, segundo anuncia a respectiva justificação, almeja expandir aos sucessores os efeitos da sentença que tenha excluído o herdeiro indigno da sucessão.

Em relação ao PL 3.572/2021, trata-se, novamente, de proposta já contida no PL n° 3.799/2019, lá justificada “em razão da possibilidade de concorrência de herdeiros de classes diversas, como é o caso dos descendentes do falecido concorrendo com seu cônjuge ou companheiro. Nesses casos, a parte do herdeiro renunciante deve ser dividida de forma equitativa entre todos os demais herdeiros chamados a suceder, e não somente entre aqueles da mesma classe” [5].

No tocante ao PL 3.634/2021, vê-se um verdadeiro despautério, que atenta contra a higidez do sistema, eis que pretende estender os efeitos da exclusão por indignidade aos sucessores do herdeiro indigno, quando se sabe que a indignidade é pena, não podendo os seus efeitos extrapolarem a pessoa do indigno.

Diversos outros projetos sobre a sucessão hereditária percorrem, atualmente, os corredores e escaninhos do Congresso Nacional, não havendo espaço aqui para abordar cada um deles, bastando realçar que a mera existência dessas propostas já evidencia, tanto a multiplicidade de iniciativas legislativas sobre o tema, como a premente demanda da sociedade pela atualização do marco regulatório do Direito Sucessório brasileiro.

 

[1] Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7973456&ts=1630421284494&disposition=inline. Acesso em 11/11/2021.

[2] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2228037.  Acesso em 11/11/2021.

[3] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2302894. Acesso em 11/11/2021.

[4] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2303130. Acesso em 11/11/2021.

[5] Cf. justificativa ao PL 3.799/2019. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7973456&ts=1630421284494&disposition=inline. Acesso em 11/11/2021.

Mário Luiz Delgado é doutor em Direito Civil pela USP, mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP, especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco, presidente da Comissão de Direito de Família do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) e presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do IBDFAM, membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC), professor, advogado e parecerista.

Artigo publicado na Revista Consultor Jurídico, conjur.com.br

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