O Direito de família como instrumento de combate à violência doméstica

Compartilhe este post

O Direito de família como instrumento de combate à violência doméstica

20 de setembro de 2020, 8h00

Por Mário Luiz Delgado

A violência doméstica contra a mulher durante muito tempo foi legitimada pelo discurso jurídico do Direito de Família, que identificava o gênero masculino com o personagem “Chefe da Sociedade Conjugal” e lhe outorgava privilégios que refletiam o poder de um sexo sobre o outro, fundamentais para a formação das relações entre os gêneros tal como perpetuadas até os dias atuais. Vale dizer, marcadas pelo predomínio de uma ideologia masculina e heteronormativa, que justificou a construção de uma relação jurídica e sociológica entre masculinidade, autoridade e violência.

Desde os tempos do Antigo Testamento, passando pelo Império Romano até a Europa feudal e chegando à América do século XX, subsiste a ideia de que os homens são superiores às mulheres. Quase todas as leis religiosas, tais como a Bíblia Cristã, o Talmude, o Alcorão, o Livro dos Mórmons, pregam a superioridade masculina, concedendo ao homem o direito de dominar a mulher. E os conceitos machistas foram transportados para as leis seculares e vigoram até hoje em muitos países.

No Brasil, as ordenações portuguesas regulavam os poderes maritais, permitindo ao marido castigar, e até mesmo matar, sua mulher em caso de adultério. Segundo Álvaro Ricardo de Souza Cruz, “o processo de repressão às mulheres é elemento sistemático e constante nos últimos quatro milênios. Qualquer remota reação era punida drasticamente. Como exemplo, a ideia do apedrejamento de adúlteras e prostitutas descritas no Antigo Testamento, prática ainda vigente em alguns países do Islã”1.

A regulação jurídica da família, na medida em que estabeleceu um sistema de papeis estruturador das relações de gênero e suficiente para indicar à mulher o “seu lugar” na sociedade, ao mesmo tempo em que qualquer desvio dessa posição, que lhe foi atribuída por imposição, poderia ser repelido pelo uso da força, se prestou para legitimar a supremacia sexista.

Foi no interior da família que esse regime de gênero se desenvolveu com mais brutalidade. As relações conjugais, destaca Geraldo Tadeu Moreira Monteiro, “eram dominadas pela mais estrita noção de hierarquia entre marido e mulher, àquele destinadas as funções de representante e chefe da família, gestor do patrimônio e senhor da mulher e dos filhos, enquanto à esposa reservavam-se as tarefas domésticas e a função sexual e reprodutiva”2. E a razão para essa supremacia seria bastante “clara: todo grupo social (como é a família) necessita de um comando que lhe imponha o sentido de ordem e autoridade e, à vista das diferenças naturais, esta direção deve caber ao Homem”3.

Esse despotismo marital também legitimou a violência doméstica contra a mulher, invadindo o século XX e se intrincando na tecitura axiológica do código de 1916 por meio de dois comandos legais paradigmáticos: o art. 233, que atribuía ao marido a chefia da sociedade conjugal; e o art. 6º, II, que considerava a mulher uma pessoa relativamente incapaz, marcando de forma indelével a subordinação de gênero no discurso normativo do Direito de Família e também no tecido social brasileiro, até hoje, não obstante a completa revogação desses dispositivos.

Observe-se que, mesmo após as alterações promovidas no CC/1916 pela Lei n. 4.121/62 (Estatuto da Mulher Casada), com a atribuição da plena capacidade civil à mulher casada e a introdução da “colaboração e auxílio” da esposa ao marido na chefia da sociedade conjugal, a situação pouco se alterou. Nas palavras de Geraldo Tadeu Moreira Monteiro, tratou-se de uma espécie de dissimulação da supremacia masculina, já que o estatuto feminino não sofreu qualquer mudança substancial e as limitações à capacidade e à participação da mulher persistiram sob a capa da liberdade e da igualdade, meramente formais: “A visão liberal-conservadora da organização familiar pelos doutrinadores leva-os a postular, em primeiro plano, a transformação da autoridade paterna e marital, que teria evoluído do ‘despotismo’ do pater familias para um exercício moderado do poder, reconcebido como ‘direção’ da sociedade conjugal. Por outro lado, a ‘obediência’ e ‘subordinação’ devidas pela mulher passam a ser tratadas como ‘colaboração’ e ‘auxilio’, num claro processo de ocultação da dominação masculina”4.

Felizmente, pelo menos no mundo ocidental, como bem aponta Álvaro Ricardo de Souza Cruz, “o espaço de cidadania feminino tem crescido significativamente, especialmente nas últimas décadas. De uma condição servil de tutela em relação a pais e maridos, a mulher vem cada vez garantindo uma participação na vida pública e privada da comunidade”5.

Nesse cenário, o Direito de Família atual, na medida em que desconstruiu o velho discurso supremacista que legitimava a desigualdade, tem se constituído em importante ferramenta de combate à violência doméstica. A moderna concepção de família, fundada na afetividade, na igualdade substancial entre os gêneros e na liberdade de escolhas afetivas, baniu completamente a violência e a subserviência feminina do discurso jurídico. O reconhecimento estatal para as famílias homoafetivas, a divisão igualitária dos atributos do poder familiar entre ambos os pais e a imposição da guarda compartilhada como regra, contribuíram para a redefinição do papel e do lugar da mulher, não apenas no microcosmos da família, mas na própria sociedade, fazendo cada vez mais atual o título da obra de Patrícia Lages: “O lugar de mulher é onde ela quiser”. E o papel da mulher no âmbito da conjugalidade será aquele que ela escolher.

Contudo, apesar de todas essas mudanças, a discriminação de gênero está longe de acabar, a se ver pelo número, quase diário, de feminicídios. Por infortúnio, essa dura realidade, fruto das desigualdades histórico-culturais que teimam em sobreviver no tecido social, ainda permanece. Em 2020, em plena pandemia do coronavírus, noticia-se alarmante incremento dos índices de violência doméstica6.

Portanto, a luta contra as diferenças de gênero persiste, sendo cada vez mais necessárias as ações afirmativas, a exemplo das cotas femininas na representação política, nas categorias profissionais e nos movimentos científicos e culturais; e, sobretudo, mais políticas públicas de conscientização das mulheres sobre a importância de romper o silêncio, como única forma de quebrar o círculo da violência.


1 CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. O direito a diferença: as ações afirmativas como mecanismo de inclusão social de mulheres, negros, homossexuais e portadores de deficiência 2.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 54. O autor lembra que, na perspectiva judaico-cristã e muçulmana, “Deus cria o mundo sozinho em sete dias. O homem é criado a sua semelhança. A mulher surge como subproduto (costela) do primeiro e nasce com a função, na mensagem do Antigo Testamento, como teste da fidelidade do homem para com Deus. Ela está quase sempre ligada à sedução, traição e torpeza, como nos lembram os mitos no livro do gênese de Adão e Eva, a Arca de Noé, a destruição de Sodoma e Gomorra, e a história de Dalila atraiçoando o campeão de Deus(Sansão) e de Salomé pedindo a cabeça de João Batista”. (Idem)

2 MONTEIRO, Geraldo Tadeu Moreira. Construção jurídica das relações de gênero: o processo de codificação civil na instauração da ordem liberal conservadora no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 87.

3 MONTEIRO, Geraldo Tadeu Moreira. Construção jurídica cit., p. 159.

Op. cit., p. 159.

5 CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Op. cit., p. 39.

6 Segundo matéria publicada em O Globo de 20.04.2020, brigas de casais aumentaram 431% entre fevereiro e abril. Foram coletadas no Twitter, a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 52.315 menções a brigas domésticas, das quais 5.583 relatavam violência doméstica. Mais da metade desses relatos foram feitos em abril, que registrou aumento de 53% em relação a fevereiro. Em março, quando começaram as medidas de isolamento, o aumento foi de 37%.Na avaliação da diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, a pesquisa mostra que, de fato, as mulheres estão mais vulneráveis durante o período de isolamento social e, confinadas, estão encontrando dificuldades para procurar delegacias de polícia e registrar as ocorrências. Os feminicídios também tiveram aumento expressivo no período. Aumentaram 46,2% em São Paulo (19 casos) e 400% no Mato Grosso (10 casos), por exemplo.(Disponível em : https://oglobo.globo.com/sociedade/isolamento-por-coronavirus-aumentou-briga-de-casais-em-431-afirma-pesquisa-24382476?utm_source=aplicativoOGlobo&utm_medium=aplicativo&utm_campaign=compartilhar)

Mário Luiz Delgado é advogado, professor da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (Fadisp) e da Escola Paulista de Direito (EPD), doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP e especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) e membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC) e do Instituto de Direito Comparado Luso Brasileiro (IDCLB).

Revista Consultor Jurídico, 20 de setembro de 2020, 8h00

Compartilhe este post