Muito se discute as aproximações e distinções entre o fideicomisso brasileiro e o trust anglo-saxão, muito embora a se interpretar o fideicomisso exclusivamente como espécie de substituição testamentária, nenhuma semelhança ou afinidade haveria. Ocorre que o fideicomisso disciplinado nos arts. 1.951 a 1.960 do Código Civil vigente somente constitui modalidade de substituição testamentária por opção legislativa, não se tratando, a rigor, de substituição, pois o fideicomissário não substitui o fiduciário. Os dois são sucessores do fideicomitente, em tempos diferentes: primeiro o fiduciário, depois o fideicomissário. Melhor seria classificar o fideicomisso como modalidade de negócio jurídico fiduciário.
Existem várias propostas de lege ferenda para regulamentar os contratos de fidúcia de um modo geral. O Projeto de Lei 4.758/20, por exemplo, oriundo de anteprojeto elaborado pelo advogado Melhim Chalhub e inspirado o trust anglo-saxão, cria o patrimônio de afetação do fiduciário, de modo a garantir que os bens do instituidor cheguem ao beneficiário final e prevê regras para substituição do fiduciário e revogação da fidúcia. Segundo consta da justificação do projeto, “do mesmo modo que no trust, os bens objeto do contrato de fidúcia são transmitidos ao fiduciário, mas ao invés de ingressarem no seu patrimônio, são alocados em um patrimônio separado, no qual permanecem afetados a determinada finalidade, vedada sua apropriação pelo fiduciário em proveito próprio. Na medida em que importa na transmissão da propriedade, ainda que restrita, o contrato de fidúcia se submete aos mesmos requisitos e restrições a que se submetem os demais negócios jurídicos de disposição ou oneração de bens. Assim, do mesmo modo que os contratos de hipoteca ou alienação fiduciária, a afetação também pode ser considerada nula ou anulável, nos termos já devidamente regulamentados pelo Código Civil e pelo Código de Processo Civil”.
Ressaltando a importância do instituto, opinam Melhim Chalhub, Gustavo Alberto Villela Filho e Milena Donato Oliva, “o PL 4.758/2020 sintoniza nosso direito positivo no contexto internacional, mediante adequada assimilação de certos elementos do trust e dos nossos próprios precedentes legislativos e jurisprudenciais, ao preconizar a instituição de um regime jurídico geral da fidúcia caracterizado como mecanismo de prevenção de riscos e limitação de responsabilidade”. “De fato, a experiência extraída do tratamento legal casuístico dado pelo direito positivo brasileiro e dos precedentes judiciais construídos em relação à sua aplicação prática dão mostras da efetividade desse mecanismo, e na medida em que se estreitam e se intensificam as relações internacionais, dão respaldo à instituição de um regime jurídico geral capaz de estimular os investimentos da iniciativa privada, inclusive no plano externo, mediante delimitação de riscos por meio da afetação patrimonial, conferindo maior segurança jurídica aos negócios”[1].
A eliminação das restrições ao fideicomisso, por meio de controle difuso de constitucionalidade, reconhecendo-se a inconstitucionalidade do artigo 1.952 do CC, como sustentei em coluna anterior , aliada à admissão do fideicomisso contratual, como espécie do gênero negócio fiduciário, por atividade hermenêutica, ofereceria novos e adequados mecanismos para estruturação de um planejamento sucessório com mais segurança jurídica.
Atualmente, a se admitir como existentes as barreiras contra o negócio jurídico fiduciário, causa mortis ou intervivos, chegaríamos ao paroxismo de restringir em demasia, ou mesmo inviabilizar, o exercício da autonomia privada no direito sucessório. Basta se ver o que tem ocorrido com a importação do trust nas operações de planejamento sucessório realizadas no Brasil, atraindo imprecações de nulidade com esteio na vetusta proibição do artigo 426 do CC/2002.
A utilização ampliada do fideicomisso no planejamento sucessório, permitindo-se, ainda, a indicação de pessoas jurídicas para a posição de fiduciário, permitiria ao autor da herança resguardar o patrimônio a ser transmitido aos herdeiros, beneficiando as gerações futuras de maneira mais segura, com redução dos impactos tributários e fomento das relações econômicas.
Com isso, alcançaríamos a verdadeira aproximação da figura jurídica do fideicomisso brasileiro com o trust do direito inglês e estadunidense, permitindo-se a transmissão de bens, por ato de última vontade ou ato entre vivos, a uma pessoa natural ou jurídica, para que esta os resguarde, sem deixar de usufrui-los, em benefício de outra. O transmitente dos bens, que no trust chama-se settlor equivale ao fideicomitente. O primeiro destinatário da propriedade chama-se trustee no instituto anglo-saxão e fiduciário no fideicomisso, enquanto o destinatário final dos bens será o beneficiário final no trust e fideicomissário no fideicomisso.
Não defendo aqui que haja identidade entre trust e fideicomisso, mas algumas semelhanças que permitem que o fideicomisso possa alcançar os mesmos resultados do trust, especialmente na modalidade inter vivos. O fideicomisso contratual, como contrato atípico, poderia limitar direitos e prerrogativas do fiduciário, além de especificar de forma minudente os seus deveres, aproximando-o do trustee alienígena. Com isso, e pelo menos até que o negócio jurídico fiduciário venha a ser regulamentado entre nós, poderíamos fazer uso, no planejamento patrimonial, de um mecanismo legal já existente no ordenamento e cuja ampliação, no espectro de aplicação, depende exclusivamente da boa vontade, da visão prospectiva e da criatividade do intérprete que pode, perfeitamente revigorar o instituto sem bater de frente com os textos normativos.
[1] Regime jurídico geral do contrato fiduciário. Migalhas, 8/10/2020.
Mário Luiz Delgado é advogado, parecerista, professor do programa de mestrado e doutorado da Fadisp, presidente da Comissão de Direito de Família e das Sucessões do Iasp, presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do IBDFAM, doutor em Direito Civil pela USP e mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP.
Artigo publicado na Revista Consultor Jurídico, conjur.com.br