O legado, como se sabe, é instituto próprio e exclusivo da sucessão testamentária, sem correspondente na sucessão legítima. É um ato de liberalidade disposto por testamento e que tem por objeto coisa certa e determinada. O testador beneficia alguém com uma coisa determinada ou uma importância em dinheiro.
As personagens do legado são três a) Legante (é o testador ou disponente); b) legatário, gratificado ou honrado (é o beneficiário da liberalidade). c) onerado ou gravado (é o herdeiro ou legatário encarregado de cumprir o legado.
A regulação legislativa dos legados foi disposta pelo Código Civil de 2002 entre os artigos 1.912 e 1.940. Nesse plexo de disposições não se encontra qualquer referência ao legado digital, ou seja, o legado que tem por objeto bens digitais.
A reflexão inicial a ser feita é se, realmente, necessitamos dessa previsão legislativa para dispor em testamento sobre as nossas contas em redes sociais ou outros ativos digitais.
E a resposta, já antecipo, é negativa.
A internet criou uma nova “dimensão”, tal como um dia previram os escritores de ficção científica. Os fatos, atos e negócios ocorrentes, praticados e celebrados na dimensão física se replicam na dimensão virtual, sem que sofram qualquer alteração em sua natureza jurídica. Muda o ambiente espacial ou dimensional onde os fatos se processam, porém os fundamentos para o tratamento jurídico que lhes deve ser destinado não podem ser alterados (Não se muda a natureza das coisas!).
Não seria exagero afirmar que tudo o que existe no mundo físico pode ser duplicado ou replicado no espaço virtual. Da celebração de um contrato ao julgamento de uma demanda pelo Poder Judiciário, tudo é “digitalizável”.
As relações jurídicas que se processam na dimensão física , portanto, se replicam na dimensão virtual, sem alteração da sua natureza jurídica. Muda apenas o suporte. E ainda que mude o ambiente espacial ou dimensional em que tais relações ocorrem, o tratamento jurídico não pode ser alterado. A mudança espacial não implicará em diferenciação ontológica. Os princípios que incidirão nas relações virtuais serão aqueles relacionados ao ramo do Direito melhor condizente com o tipo de relação jurídica de que estejamos a tratar (direito civil, direito do consumidor, direito penal, etc).
Partindo dessa premissa, podemos afirmar, com convicção, que também podem ser objeto de legado, independentemente de qualquer nova previsão legislativa ou de alteração do Código Civil, os chamados bens digitais, ou, de forma mais simples, coisas com expressão econômica que não existem no ambiente físico, mas apenas no espaço virtual (internet) e que estavam vinculadas ao testador enquanto vivo.
O objeto desse tipo de legado são bens imateriais, incorpóreos e intangíveis armazenados em dispositivos telemáticos ou em serviços de nuvem, abarcando fotos, músicas, vídeos, redes sociais, sítios eletrônicos, contas de streaming, documentos e dados em geral. Incluem-se aqui, especialmente, os ativos digitais conversíveis em pecúnia, tais como as milhas das companhias aéreas, que tanto podem ser trocadas por passagens, como alienadas onerosamente a terceiros; os programas de recompensas das instituições financeiras, que geram pontos para aquisição de produtos e serviços; as criptomoedas ou moedas digitais (Bitcoin, Ripple, Litlecoin, etc) e, acima de tudo, as contas em redes sociais monetizadas (que geram receita), como Instagram, Tik Tok e Youtube. Nada obsta a que um youtuber famoso deixe como legado o seu canal naquela rede, com vasto conteúdo e milhões de visualizadores, cujos recursos serão administrados e auferidos pelo legatário.
Em relação a esse tipo de ativo digital, descabe a alegação de intransmissibilidade para fins de proteção da privacidade do usuário, muito menos que as contas nas redes sociais seriam bens personalíssimos, o que só faria sentido em se tratando de contas estritamente pessoais, sem finalidade lucrativa.
Ainda que os respectivos termos de uso prevejam a extinção da conta pelo óbito do titular, vedando a transmissão, e isso se verifica na maioria dos programas de recompensas, penso ser cabível a transmissão causa mortis, na sucessão a título singular, por serem bens com conteúdo patrimonial, que passaram a integrar a herança do testador, sendo ilegais as disposições contratuais restritivas do direito de dispor do próprio patrimônio[2]. A indisponibilidade de direitos patrimoniais demanda previsão normativa expressa, sob pena de violação ao direito de propriedade e ao princípio da autonomia privada.
Como o acesso às contas de usuários falecidos só é normalmente admitido pelas plataformas quando autorizado pelo titular enquanto vivo, a transmissão hereditária de bens digitais é especialmente problemática na sucessão legítima, notadamente pela omissão normativa sobre o tema, mas é perfeitamente adaptável à sucessão testamentária, constituindo o testamento instrumento hábil a que testador legue seus ativos digitais mediante a autorização de acesso, acompanhada de login e senha, quando necessários [3].
No caso de criptomoedas, o legado pode abranger também o dispositivo eletrônico ou token. E se existente no ambiente físico, no testamento constará a sua localização, ou mesmo o próprio pendrive ou USB-Stick, passíveis de inserção no invólucro, juntamente com a cédula, nos testamentos cerrados.
[1] Em sentido contrário, o STJ, no julgamento do REsp 1878651-SP, 3ª T., Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 04.10.2022, considerou válida a cláusula do regulamento do programa de fidelidade da TAM que previa o cancelamento dos pontos acumulados após o falecimento do usuário.
[2] Durante a IX Jornada de Direito Civil promovida pelo CJF, foi aprovado o seguinte enunciado: “O patrimônio digital pode integrar o espólio de bens na sucessão legítima do titular falecido, admitindo-se, ainda, sua disposição na forma testamentária ou por codicilo” (Enunciado nº 687).
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Mário Luiz Delgado é doutor em Direito Civil pela USP, mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP, especialista em Direito Processual Civil pela UFPE, diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), presidente da Comissão Nacional de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), professor dos cursos de pós-graduação das Escolas da Advocacia e da Magistratura, advogado e parecerista, membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC). Foi assessor, na Câmara dos Deputados, da relatoria-geral do projeto de lei que deu origem ao novo Código Civil Brasileiro. Autor e co-autor de livros e artigos jurídicos.
Artigo publicado na Revista Consultor Jurídico, conjur.com.br